O bonde da Suzana
“Eu não aceito que você se esconda nesse seu quarto”, disse a amiga ao arrancar o lençol de cima de Suzana. Elas tinham apenas 11 anos e uma maturidade que poucos têm durante toda uma vida. “Eu tinha um grupo de amigas e todos os dias elas me ligavam, às 7 horas da manhã, para me chamar para a escola, para saber como eu estava, para me incentivar”, destaca a moça.
Ela brinca que tinha o seu “bonde”, um grupo de amigas fiéis e sua irmã mais velha, Joyce, que iam para a briga por ela, que a protegiam, que a amparavam todos os dias. Mesmo assim, a vida de Suzana não foi fácil. O bullying vinha com musiquinhas jocosas, com provocações. Ela faltava muito às aulas, porque tinha dias que não conseguia sequer andar, se mexer, dormir. “Chegava a faltar dias seguidos, era boa aluna, mas nunca consegui ter a frequência mínima. Só não repeti por faltas porque tinha o relatório médico. E tinha dias que eu estava simplesmente cansada, porque não tinha conseguido dormir”, conta.
Suzana demorou para entrar na escola. Entrou aos seis anos. Os pais, justamente, temiam que ela sofresse naquele ambiente. Um dia, um médico disse que a menina precisava conviver com outras crianças, ir para o mundo, desenhar a sua própria vida. “Meus pais tinham muito receio de que eu entrasse na escola. Fora todas as questões da pele, as feridas, os horários dos remédios, as pomadas que eu tinha que passar, eles tinham muito medo do bullying e preconceito que eu poderia sofrer dos colegas”, conta.
Ela sempre foi muito bem acolhida na escola onde estudou durante oito anos. E tinha o que ela chama de seu “bonde fechado”, as amigas fiéis. “Eu sempre fui cara de pau, falante. Por isso também criei um grupo de amizades muito unido, um ‘bonde’, que levo pra vida toda”.
As noites do pijama
Durante todos os momentos, a família estava ali, presente, dando apoio emocional e suporte durante as fases onde a DA aparecia com mais força.
Por um ano, Suzana estudou em casa com seus pais. Como ela havia entrado mais tarde, o processo de alfabetização estava comprometido. Em casa, seu pai e sua mãe ajudavam a menina a colocar a matéria em dia.
Já no ensino fundamental, as coisas começaram a ficar mais difíceis. Ela se emociona ao contar que o pai fez uma cartilha, que ela guarda até hoje. “Ele fez um documento enorme sobre mim, descreveu toda a DA, quais os cuidados que os professores tinham que ter, o que me dava reação alérgica, como as pessoas tinham que se comportar e como cuidar de mim”, conta tentando segurar as lágrimas que insistem em cair. Na capa desse documento estava escrito assim:
“Não compare minha criança com nenhuma outra criança, assim você verá todos os dias o seu progresso”.
“A vida foi muito dolorosa”, confessa, “quando eu tinha uns 15, 16 anos eu tinha uma revolta dentro de mim. Achava injusto uma criança ter que sofrer tanto”. Mas o apoio que ela recebeu da família e dos amigos deu significado a sua vida.
Como era muito difícil ela poder ir para a casa das pessoas, os pais organizavam piqueniques todos os finas de semana e recebiam os amigos de Suzana em casa. “Minha casa estava sempre cheia de gente”, relembra com um sorriso largo.
Metamorfoses e fases
Os relacionamentos amorosos nem sempre foram simples. Na visão de Suzana, havia uma barreira. “Como eu vou esperar que alguém me ache bonita, sendo que eu não me acho bonita? Como eu vou ser aceita se eu não me aceito?”.
Relacionar-se veio junto com um processo de autoaceitação, de se conhecer, entender seu corpo e o que é “ser bonito”. “Quando eu parei de associar o amor com a estética foi que eu entendi que o amor vem de dentro, que ele não olha sua estética e nem sua pele… foi bem mais fácil”. Esse processo demorou 20 anos e contou com transformações e metamorfoses, segundo a jovem.
O medo e a vergonha caminhavam junto com ela: medo de se olhar no espelho, do que os outros podiam dizer e comentar, do nojo, como ela diz, do que as pessoas podiam sentir. “Fui me fazendo perguntas sobre o meu propósito, o que aquilo queria dizer. Comecei a me aceitar, aceitar meu corpo. Demorou e não foi fácil”. Mas, ela tinha consciência de que queria viver.
“Aprendi que minhas marcas mostram a minha história. Não tem como mudar o outro, mas tem como mudar o que você sente em relação ao outro”.
A relação com a irmã também evoluiu muito com o tempo. Elas sempre foram muito próximas, nas só depois de muita terapia, Suzana conta, é que ela conseguiu se livrar de uma culpa em relação à irmã, que a perseguia. Joyce também tem DA, mas em um grau bem mais leve. Entrou em remissão, mas a DA voltou agora que ela está com trinta anos. São cinco anos de diferença entre as duas. “Eu cheguei para bagunçar tudo. A irmã mais nova, que veio com um problema. Tinha na minha cabeça esse peso de que eles tinham uma vida normal e, de repente, ele teve que dividir a atenção com uma irmã que estava sempre no hospital”, desabafa. Mas Joyce sempre esteve por perto e sempre cuidou muito de Suzana. E, hoje, elas conversam muito sobre tudo, e tem uma ótima amizade.